
A cada ano, novas experiências e reflexões urgentes
O Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade - fundado e dirigido pelo crítico Amir Labaki - em 2017 chega à sua 22ª edição. É o mais antigo evento anual dedicado exclusivamente a documentários na América Latina.
De 19 a 30 de abril, o melhor do cinema documentário atual brasileiro e internacional ocupará as telas do Rio de Janeiro e São Paulo. As produções premiadas e destaques participarão em seguida do circuito itinerante em Porto Alegre e Brasília.
Nele, todas as sessões são gratuitas, e neste ano contará com 82 títulos de 30 países, sendo 16 estreias mundiais. A estrutura de programação conta com sete produções nacionais inéditas no país selecionadas para a competição brasileira de longas e médias-metragens, e nove - sendo seis inéditas no Brasil - para a competição brasileira de curtas-metragens. Da competição internacional de longas e médias participarão 12 documentários, e da competição internacional de curtas, 9 títulos - em ambas categorias - todos inéditos no país.

Pela primeira vez o festival apresenta uma competição de longas latino-americanos, com 7 produções. Nos últimos anos é crescente a produção de ficção e documentários desta região, sendo apresentados nos últimos anos, filmes e temas bem expressivos. Só neste ano foram 147 longas inscritos. A premiação para uma dessas produções, segundo Labaki, é a vontade de uma demanda existente há algum tempo.
“É um alento que seja tão vigorosa a produção de documentários nestes dias de 'fatos alternativos' e 'fakenews'”, comenta o fundador e diretor do festival. “Contra a confusão que desumaniza, nada melhor do que o olhar original sobre a realidade de um cineasta com a sua câmera. É por meio deles que o É Tudo Verdade espelha o mundo”.

Dentre as mostras informativas há as projeções especiais, com destaque para dois filmes. O primeiro é 78/52, do diretor Alexandre O. Phillippe (The People vs George Lucas, 2010). O documentário dedica seus 90 minutos à minuciosa análise de uma das cenas mais famosas da história do cinema: o assassinato, sob o chuveiro, do suspense Psicose (1960), de Alfred Hitchcock. Exploram-se inúmeros aspectos da sequência que, completa, não ultrapassa três minutos. O que não impediu - na época do lançamento - a gritaria do público nas salas. O documentário chamou a atenção na edição deste ano do Festival de Sundance.

O outro é No Intenso Agora, de João Moreira Salles (Santiago, 2007), terá sua pré-estreia brasileira no festival e já ganhou prêmios na França. O filme teve sua primeira aparição mundial no Festival de Berlim em fevereiro deste ano. Imagens recolhidas por sua mãe numa viagem à China em 1966 dão ao cineasta o fio inicial para este documentário. Colocando em paralelo estas imagens e outras de diversas origens e arquivos, ele capta não só aspectos de sua vida familiar como os movimentos que atravessaram alguns dos momentos políticos mais transformadores do século XX. Segundo Labaki, é impressionante ver como o cineasta - ao trazer inovações para o documentário com Santiago - consegue, mais uma vez, surpreender em um filme que promete ser o do ano.
A mostra O Estado das Coisas sempre é uma das mais interessantes ao trazer temas vivos, urgentes, polêmicos e existenciais. Três são os destaques:

Laerte-se, das diretoras Lygia Barbosa da Silva e Eliane Brum (Gretchen Filme Estrada, 2010), faz sua pre-estreia mundial. É o primeiro documentário brasileiro original Netflix, com lançamento mundial dia 19 de maio de 2017. Em uma época em que as questões de gênero aumentam e as discussões se aprofundam com toda a necessidade, o filme apresenta o perfil da transgênero mais famosa do Brasil - a cartunista Laerte - que fala das particularidades a partir da decisão de viver como mulher, em 2009. Suas relações familiares, o apoio de amigos, as mudanças de seus personagens e suas posições políticas fazem parte das conversas.

Permanecer Vivo – Um Método, do diretor Erik Lieshout, traz questionamentos existenciais sobre a angústia do fazer artístico. Em 1991, inspirado pelas histórias de vida de algumas pessoas com distúrbios psiquiátricos, o escritor francês Michel Houellebecq (Partículas Elementares, 1998) escreveu seu provocativo ensaio Rester Vivant (Permanecer Vivo).
Vinte e cinco anos depois, o roqueiro norte-americano Iggy Pop extrai do ensaio trechos que correspondem a alguns de seus próprios desafios pessoais. Michel Houellebecq é o enfant terrible da literatura francesa atual. Odiado e amado, os seus livros abordam sempre temas na moda e são altamente polêmicos porque ele tem sempre um ponto de vista iconoclasta sobre os problemas. Da relação do escrito e vida, essas duas personagens se encontram para uma fagulha perceptiva sobre a existência.

Todos os Governos Mentem, do diretor Fred Peabody, ao adotar como título a máxima de I.F. Stone (1907-1989), explora a sobre vivência do legado do célebre jornalista investigativo norte-americano. Em tempos nos quais corporações midiáticas optam pelos altos índices de audiência em detrimento da busca pela verdade, mais do que nunca é fundamental o trabalho de repórteres comprometidos com sua revelação.
A retrospectiva internacional – 100: De volta à URSS apresenta doze documentários, divididos em oito programas, da era soviética, com cópias especialmente disponibilizadas pelo Austrian Film Museum, Gosfilmofond, Net Film Moscou e Lenfilm. “A produção não-ficcional na extinta URSS é um dos continentes submersos da história do documentário. No centenário das revoluções de 1917, a anti-czarista de fevereiro e a bolchevique de outubro, nada mais oportuno do que propor um ciclo especial para pesquisá-la”, afirmam os co-curadores Amir Labaki e Luis Felipe Labaki. Os filmes apresentados não são encontrados facilmente pela internet, então é uma boa oportunidade de mergulhar por águas pouco conhecidas, mas esteticamente fundamentais e revolucionárias.

Sal para Svanécia, filme de 1930 do cineasta georgiano Mikhail Kalatôzov, produz um retrato etnográfico nada convencional da vida de uma isolada comunidade camponesa no Cáucaso. Ele incorporou materiais filmados originalmente para uma ficção que realizou no local, mas que não foi acabada. O resultado é um filme híbrido, com roteiro do escritor Serguei Tretiakóv, frequente colaborador da revista LEF.
A retrospectiva brasileira destaca a obra do cineasta e poeta Sergio Muniz. Serão 8 filmes, perpassando por curtas, médias e longas. Como documentarista, Muniz dirigiu alguns dos títulos mais marcantes da “Caravana Farkas” nos anos 1970 e realizou em 1971 um pioneiro filme-denúncia contra a violência institucionalizada pela ditadura militar, filme mantido inédito até o começo dos anos 2000. Desde o começo de sua amizade com o cineasta argentino Fernando Birri - no princípio dos anos 1960 -, ele tem sido um dos mais ativos catalisadores de parcerias entre o cinema brasileiro e o latino-americano, tendo destacada participação no estabelecimento e consolidação da Escola Internacional de Cinema e Televisão de Cuba (EICTV).
Cineastas consagrados ou revelações, esses artistas do real oferecem visões únicas sobre o mundo numa programação exclusiva que além das projeções contém também debates mesas, homenagem ao poeta Ferreira Gullar, apresentações especiais e o lançamento do livro Bernardet 80: Impacto e Influência no Cinema Brasileiro, organizado pelos críticos Ivonete Pinto e Orlando Margarido. A produção do professor, teórico, crítico, roteirista, diretor e ator é analisada por 15 autores.
O festival É Tudo Verdade proporciona a cada ano ótimas experiências e reflexões, com documentários exploradores da linguagem cinematográfica, em uma articulação mais corajosa e exposta aos riscos do que acontece com a ficção ultimamente.