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A REPARTIÇÃO DO TEMPO


Cinema nacional com ares tarantinescos

Sempre volto a esse assunto, afinal, com o desenvolvimento do cinema brasileiro - muito por conta da lei que exige cotas de programação nacional nas TV's por assinatura - cada vez mais surgem filmes que saem do "lugar comum", procurando explorar vertentes que antes só víamos surgirem vindas de fora do país.

Curiosamente, o filme A Repartição do Tempo chega aos cinemas - após percorrer o circuito de festivais - numa época em que a série Dark faz grande sucesso no Netflix, sendo que ambos abordam a questão da viagem no tempo, ainda que a semelhança entre eles limite-se a isso.


Na trama, o idoso Dr Brasil (Tonico Pereira) tenta registrar sua invenção de uma máquina do tempo na REPI - Registro de Patentes e Invenções (cuja grafia deveria ser Repi, conforme a norma culta da língua), devido à morosidade do órgão, à invenção é guardada pelo atendente Zé (André Deca) num depósito e acidentalmente Jonas (Edu Moraes) - outro funcionário - a coloca em funcionamento, voltando alguns minutos no tempo. O patrão Lisboa (Eucir de Souza) percebe o ocorrido e tenta usá-lo a seu favor, para por o trabalho em dia e dar uma resposta à imprensa, que o escrachou publicamente.


Querer dar o nome de "Dr Brasil" no personagem que pretende registrar a máquina para reforçar que a repartição é uma alusão ao país é um recurso bastante questionável. Bem como a participação do ator esteja no "piloto automático", uma vez que é o mesmo Tonico Pereira de sempre (em participação especial), algo muito distante de sua excelente interpretação na lendária série A Grande Família.

Outra participação especial é do ator/humorista Dedé Santana. Ícone dos anos 80 no programa Os Trapalhões, é de uma geração de humor diferente dos dias de hoje, e em A Repartição do Tempo, que não é um humor tradicional, soa deslocado. É algo como se pegasse um quadro do antigo programa televisivo Zorra Total (TV Globo) e colocasse no atual Zorra, que o substituiu.


Certamente, o destaque do elenco vai para o excelente (e pouco conhecido) ator Andrade Jr - que já tinha protagonizado o curta-metragem Meio Expediente, do mesmo diretor estreante Santiago Dellape - interpreta um funcionário concursado, que está há décadas na função e sabe tudo do ofício. Andrade consegue encontrar o ponto certo entre a comédia e o drama da situação em que se encontra. O filme ainda traz as participações especiais de Selma Egrei e Sergio Hondjakoff.


Dellape - que divide roteiro com Davi Mattos - sabe mesclar muito bem humor, ficção científica e realismo fantástico - tão raro no nosso cinema - fazendo uma crítica ao funcionalismo público e à morosidade dos órgãos governamentais de forma leve e divertida. Nota-se uma enorme influência do supervalorizado cineasta Quentin Tarantino, com a inclusão de quadrinhos no desfecho da história, também através dos longos e inusitados diálogos - claro que sem a mesma maestria - e personagens caricatos, como o chefe inútil que só conseguiu o cargo pelo nepotismo de sua mãe senadora, ou então a secretária gostosona - e nesse caso houve um erro de escalação - que mantém-se no cargo seduzindo o chefe e seus colegas. Também percebe-se a influência de Tarantino na trilha-sonora, recheada de temas pops, como um delicioso que emula a black music dos anos 70. O filme também não escapa do clichê de personagens fumando maconha, como se isso fosse um símbolo de status e de mostrar-se "descolado". Ledo engano.


Como normalmente acontece em histórias que abordam a viagem no tempo, se analisarmos racionalmente, o roteiro tem furos. Mas isso fica para segundo plano quando a obra busca o entretenimento acima de tudo. O mesmo poderíamos falar de grandes sucessos do cinema, em que precisamos "desligar o cérebro" e nos entregarmos à história. Se não fosse, assim, como justificar que no filme Cidadão Kane (Orson Welles, 1941), considerado frequentemente como o melhor filme de todos os tempos, seja baseado em quem é a tal de Rosebud - que o protagonista cita na hora de sua morte - se naquele momento ele estava sozinho?


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