
Crepúsculo dos malditos
Entre meados dos anos 60 e ao longo de toda a década de 70, a região paulistana aqui retratada, era um importantíssimo pólo de produção cinematográfica que, em 1977, por exemplo, chegou a produzir 102 filmes (longa-metragens) num único ano! No entanto, após passar por intenso processo de degradação, com a total conivência do Estado, diga-se de passagem, as imediações da rua Santa Ifigênia e estação da Luz hoje carregam o triste estigma e também o apelido de "Cracolândia".

O documentário assim intitulado, produzido e dirigido por Edu Felistoque (Toro, 2016), retrata e analisa o hoje famigerado quadrilátero da decadência, por meio de entrevistas com profissionais da área de justiça, policiais e alguns poucos depoimentos coletados junto aos próprios habitantes deste, digamos assim, universo paralelo.
Apesar de seu formato bastante clássico em termos narrativos, o uso da câmera em constante "plongée" (ângulo de cima para baixo) dá ao filme um interessante ponto de vista ao colocar os indivíduos ali retratados, como um autêntico objeto de estudo aos olhos da câmera, quase que numa relação entre o "cientista" e seu objeto de pesquisa.
Se por um lado a opção de filmagem é interessante, por outro, a montagem nem sempre acerta a mão no sentido de conferir ritmo e fluência narrativa ao filme.
Boa parte do documentário, inclusive, possui um narrador externo, na figura do cientista político e atual deputado estadual em São Paulo pelo Partido Novo, Heni Ozi Cukier.

Num primeiro momento, Cukier discute o processo de degradação da região e obviamente dos seres humanos ali vegetando diariamente, para em seguida, viajar ao hemisfério norte, mais especificamente Estados Unidos e Suíça (Zurique), visando nos apresentar as "soluções" ali encontradas, tais como por exemplo, a manutenção de salas controladas de usos de entorpecentes, fornecidas aos indivíduos (usuários) pelo próprio Estado.
Um dos momentos mais contundentes de Cracolândia, é o registro de uma ação policial na região, durante a qual uma mulher, de forma totalmente alheia ao tumulto que ali evidentemente se instala naquele momento, sorri, aparentemente feliz mesmo, enquanto caminha com seu véu na cabeça.

Ao ser questionada pelo documentário sobre o que ela pensava a respeito da ação policial, ainda sorridente, ela diz: "Deus é maravilhoso e sabe o que faz. Eu não sei o que digo".
Me preocupa o fato de que tal depoimento possa, inclusive, dar respaldo à ideia de que a intervenção policial sistemática seja mesmo "a única maneira de solucionar o problema da região", dado o caráter de total alienação em relação à realidade, apresentada pela quase totalidade dos indivíduos que por ali transita e verdadeiramente vegeta diariamente.
Mas trata-se apenas de um ponto de vista, acerca de um universo paralelo que só tende a crescer, aliás, já cresceu 140% desde 2012 e tende a piorar, graças à nova crise econômica gerada pela pandemia.
Eis o inevitável resultado da omissão (pra não dizer conivência) do Estado, ao longo de décadas, em relação a este gravíssimo problema.
O filme está sendo exibido na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo através do link: