DE MERO REGISTRO A DOCUMENTO HISTÓRICO
Na história do cinema, diversos filmes entraram pra história por sua importância e inovação, mas neste caso o filme ganha ares de documento histórico.
Cabra Marcado Para Morrer - primeiro longa de Eduardo Coutinho (Edifício Master, 2002 e Peões, 2004), hoje considerado o melhor documentarista brasileiro - tem seu início no ano de 1964. à época, Coutinho pretendia filmar uma história real onde não atores - expressão em moda atualmente - interpretariam seus próprios papeis ao contar a história do assassinato do líder camponês João Pedro Teixeira a mando de latifundiários.
O que seria motivo de sua quase eliminação também tornou-se sua principal mitificação: a prisão de parte dos integrantes da equipe pelo exército e tentativa de eliminação do material filmado, logo após o início das filmagens e o Golpe Militar de 64.
Alguns integrantes da equipe conseguiram se esconder na mata e fugir em seguida. Parte das filmagens já tinham sido enviadas a São Paulo - para serem reveladas - e assim puderam ser recuperadas, junto com seis fotos que uma pessoa da equipe escondeu.
Em 1981 - época em que o regime militar estava em fase de abertura pelo presidente João Batista Figueiredo (1918 - 1999) - Eduardo Coutinho retoma as filmagens e vai até Elizabeth Teixeira, viúva do assassinado, saber o que se passou com a família após 17 anos.
Elizabeth conta como foi ter que se esconder sob outro nome em outra cidade e apenas com um de seus onze filhos. É nítida a revolta do mais velho - inclusive uma certa desconfiança em relação à equipe. O diretor também conversa com a filha, que teve que ser "dada" a seus avós com apenas um ano de idade.
Num momento de rara sensibilidade, Coutinho exibe o material original para seus participantes ainda vivos e extrai a surpresa e alegria demonstrada por eles ao assistirem as imagens.
Lançado em 1984, Cabra Marcado Para Morrer é um retrato de um Brasil ainda atual, onde assassinos que tem dinheiro não são presos - o mandante se esconde através de um cargo público que ocupa após o titular e mais quatro suplentes renunciarem ao cargo - e mostra o que a luta por um país mais justo pode fazer com seus líderes e familiares.
É possível identificar o latente talento do diretor para extrair de seus entrevistados tudo o que deseja, além do seu estilo - na época inédito - de se colocar frente às câmeras e mostrar ao espectador os momentos que antecedem as entrevistas. Algo como um making of dentro do filme.
Considerado o mais importante documentário brasileiro - e Coutinho o grande mestre do gênero - este filme mostra a importância do cinema que vai além dos limites do entretenimento e diversão. Tem na superação de seus percalços - e persistência do diretor - um documento histórico de uma época tão recente e para muitos desconhecida.