A densidade conquistada pela inocência
Mulher Maravilha - novo filme da DC Comics sobre o universo de um dos seus super-heróis -, com direção de Patty Jenkins (Monster, 2003), chega às telas para afirmar de vez a maneira como querem retratar essas personagens pela linguagem cinematográfica. As duas grandes marcas DC e Marvel seguem caminhos diferentes na produção de seus filmes - o que agrada e desagrada os fãs -, mas há uma questão intrínseca a esse gostar e não gostar: a profundidade da personagem e tema retratados.
Os filmes da Marvel tratam as personagens com superficialidade, abusam das cores e muitos minutos de explosões, com tramas simples, conflitos rasos e personagens sem grandes psicologias. A importância desses seres está em seu poder de destruição ou proteção na dualidade bem e mal. Há exceções nos últimos filmes Capitão América: Guerra Civil (Joe Russo e Anthony Russo, 2016), X-Men: Apocalipse (Bryan Singer, 2016) e Logan (James Mangold, 2017), o que mostra um olhar renovado para essas questões e mesmo assim a grande aceitação do público. A DC desde a trilogia Batman de Christopher Nolan (Interstellar, 2014) aposta no aprofundamento dos seus heróis e as facetas do humano em suas personalidades e nas suas relações, com acertos e erros, mas fica clara a intenção de como constroem o seu universo e os seus seres. Em contraposição aos filmes da Marvel, a fotografia desses filmes está em tons mais frios e imagens mais escuras de maior densidade.
Mulher Maravilha conta a história de Diana (Gal Gadot), uma guerreira que mora em Temiscira - ilha feita pelo deus grego Zeus - para abrigar as amazonas, guerreiras que protegem os seres humanos de Ares, deus da guerra. Esta ilha é desconhecida pelos seres humanos, mas acaba descoberta após um espião americano, Steve Trevor (Chris Pine) sofrer um acidente de avião ao fugir de soldados alemães. No mundo humano acontece a Primeira Guerra Mundial, e ao saber disso, Diana se vê na obrigação de ir para lá ajudar a acabar com isso, pois entende que Ares retornou para causar esse problema.
A construção dessa heroína por Gadot traz uma inocência que vai se fortalecendo em sua essência ao lidar com as problemáticas desse universo humano desconhecido por ela até então. Questões femininas são trazidas ao longo do filme e com piadas provocadoras de discussão sobre nossas convenções. Os poderes dessa personagem se intensificam à medida que ela intensifica sua humanidade, ela não vem pronta e definida contra tudo e todos, com um ego inabalável e prepotente, e sim fragilidades auxiliadoras para se colocar no mundo. A atriz traz intensidade e camadas para a personagem, o que destroi as esteriótipos de heróis com poderes sobre-humanos.
O roteiro de Allan Heinberg (The Catch, 2016) é consistente do início ao fim em sua proposta de traçar a trajetória de Diana e sua mudança de percepção sobre o mundo. O que é interessante é essa relação com o mundo humano em um fato histórico: a Primeira Guerra Mundial. Essa intersecção das questões humanas com as questões dos heróis, desses universos não apenas na prática, mas as problemáticas das ações é algo que vem sendo explorado em alguns dos filmes do gênero e que contribuem para não serem apenas superficiais e se perderem nos efeitos especiais. A fotografia de Matthew Jensen (Quarteto Fantástico, 2015) e o cenário trazem a dualidade de mundos propostas pelo roteiro, a beleza de Temiscira e a frieza da guerra, vivacidade em um, densidade em outro.
Em suas mais de 2 horas o filme é envolvente nas ações, sem aquele distanciamento que outras produções proporcionam, onde todas as certezas estão colocadas e só vemos tudo dar certo. Discute o empoderamento feminino ao lidar com o machismo do começo do século e atual, um filme que dialoga com nosso tempo e cria outras dimensões. A DC tem mostrado grandes qualidades em alguns desses filmes ao trazer densidades para suas personagens, mas o fãs parecem preferir nas telas puro entretenimento, efeitos gráficos e heróis piadistas egocêntricos. A qualidade de Mulher Maravilha está também em renovar o olhar dos espectadores para Batman vs Superman (Zack Snyder, 2016) e ao universo cinematográfico que virá.