O Mecanismo é mais embaixo
Filmado com "pegada" de documentário, Ciganos da Ciambra (A Ciambra, 2017) - de Jonas Carpignano (Mediterrânea, inédito) - retrata a vida marginal de uma família na comunidade de ciganos Ciambra do sul da Itália, na região da Calábria. Protagonizado por atores não profissionais - que emprestam alguns dos próprios nomes aos personagens -, o diretor faz jus à herança do neo-realismo italiano rodando as cenas no interior da comunidade, na cidade de Gioia Tauro, centrando na história de um garoto de 14 anos chamado Pio (Pio Amato) que está sendo instruído por seu primo na carreira de roubos e outros ilícitos.
Segundo longa-metragem de Carpignano, de forma muito viva e surpreendente faz uso nervoso da câmera em cortes abruptos, coerente com a ambientação, conduzindo-nos ao retrato neo-realista do mecanismo de reprodução do submundo social. Nele, Pio - um adolescente com aspectos fortes de liderança, ousadia e inteligência - é tragado para a prática do crime, como um negócio, como sua forma de ganhar a vida.
Um marxista diria que é a reprodução do lumpesinato (aqueles que são párias da sociedade colocados à margem pelo modo de produção capitalista). Outros, liberais, diriam que é a forma de constituição do mercado do crime organizado, cabendo à repressão torná-lo inviável economicamente.
O diretor não toma partido de ideologias. As interpretações de causas e fins ficam por conta do espectador. O filme simplesmente mostra - na mais cruel e sincera captação de imagens - o mecanismo de manutenção e reprodução no andar de baixo da sociedade italiana. Poderia ser no Brasil - nas favelas, nas periferias - ou na Europa - em seus centros periféricos para refugiados e imigrantes -, ou ainda nos EUA, no subúrbio de Los Angeles repleto de mexicanos marginalizados.
Por sinal, o processo de marginalização étnica surge nas primeiras cenas como parte deste mecanismo lúgubre de pauperização. Antes do espectador se encontrar com Pio, aparece seu avô quando jovem, acariciando a crina de um cavalo e bebendo de um córrego em uma paisagem rochosa. É um flashback do passado migratório, quando famílias romani vagavam livres em carroças puxadas por cavalos. Corte abrupto e somos levados ao presente empobrecido, Pio em meio a um tumulto familiar em um complexo cheio de lixo na Ciambra, onde ele corre dentro dos limites estabelecidos pelos policiais e pelos italianos da máfia que encomendam os roubos. Fuma como se fizesse tributo aos jovens da Nouvelle Vague, estuda seus roubos e engendra planos para auferir seus lucros ilícitos.
Ayiva, interpretado por Koudous Seihon, é um imigrante negro de Burkina Faso, melhor amigo de Pio. Ambos irão protagonizar uma passagem que coloca à prova o mecanismo de reprodução social, com desenlace que confirmará a trajetória seguida pelo filme. Embora menosprezados pelo andar de cima, os ciganos também desprezam os recém-chegados de pele mais escura, e constituem um degrau na hierarquia da estratificação étnica e social. São camadas que tentam transposições, mas que na prática apresentam pouca mobilidade.
É uma forma de equilíbrio instável que Carpignano consegue transmitir pela narrativa das imagens, auxiliado por desempenhos de atores que se confundem com os personagens, claramente inspirados na sua aura de “mundanidade” e energia vital trazidas de suas experiências. Ciganos de Ciambra é uma história de vigor e autenticidade do que acontece mais embaixo nas camadas sociais. Sem romantizar, deixa em aberto ao espectador uma paleta de sentimentos: do conformismo à necessidade de mudar, mas de qualquer forma o ponto de partida é o mesmo, a vida é assim.