Uma viagem improvável
Dirigindo pelas estradas do Sul segregacionista dos Estados Unidos no ano de 1962, um leão-de-chácara do Bronx conduz um virtuoso pianista afro-americano em sua turnê artística que sabidamente será perigosa, se não pela integridade física, ao menos para a saúde mental de quem é alvo das mais humilhantes ações preconceituosas. Esse é o eixo central que sustenta pouco mais de duas horas do filme indicado para cinco categorias do Oscar 2019, dentre eles de melhor filme, ator principal e coadjuvante. Green Book é o título do guia que os viajantes afro-americanos deviam levar naquela época indicando os hotéis e restaurantes que aceitavam a presença de negros.
O filme é inspirado na relação da vida real entre o músico Don Shirley (Mahershala Ali) e o brutamontes ítalo-americano Tony "Lip" Vallelonga (Viggo Mortensen). Tony se torna o guia contratado por Don para conduzi-lo nessa temerosa turnê e também é sobre ele que o foco das cenas se desenrola para contar ao público a história daquela viagem.
O desempenho de Mortensen é extraordinário, consegue expressar com naturalidade o papel do motorista ignorante e acompanhante rude que de início se revela racista, mas com a convivência vai se aproximando de Don a ponto de lhe mostrar os prazeres do frango frito e compartilhar um balde da gordurosa iguaria do Kentucky (preste atenção no bom jogo de cena entre os atores).
Pode-se acusar o diretor Peter Farrelly (Debi & Lóide 2, 2014) de estereotipar os papéis, mas os atores conseguem salvar e evitar este naufrágio. O problema maior parece estar em tratar o problema inter-racial com uma certa superficialidade, que tenta se resolver apenas ao final com uma cena um pouco mais forte, aparentemente mais próxima do que pareceria ser uma reação natural, porém, mesmo para os mais afeitos ao realismo devemos considerar que não é preciso tingir a tela de sangue a todo momento.
Uma curiosidade da produção é o roteiro ter sido escrito pelo filho de Tony, Nick Vallelonga (Aquarius, 2015), em parceria com Brian Hayes Currie. Nick deu vazão ao que ele escutou do pai sobre a aventura no Sul. Ambos os personagens reais já estão mortos e não saberemos se a versão de Nick seria contestada ou teríamos um outro lado na ótica de Don. O músico é representado como virtuoso, porém frustrado por não conseguir tocar sua preferência pelos clássicos, mostra-se isolado, com problemas de identidade e uma homossexualidade sugerida.
Tony, por sua vez, é rude, falante, abertamente racista, ao menos no início, mas construído para o americano médio perdoá-lo, afinal deve ser um cara legal. Podem ser nuances da ficcionalização empreendida pelo diretor, mas o Gren Book era real. Don, de verdade, tinha que ficar de beliche em motéis e pensões domésticas só para negros, enquanto seu motorista e dois músicos acompanhantes brancos geralmente dormiam em outro lugar. Lavatórios e salas de jantar estavam fora dos limites para Don, mesmo em locais onde ele se apresentava. Certamente esse segregacionismo mais físico mudou, mas será que nas mentes e corações, assim como em Tony, as coisas mudaram ?