top of page

A LENDA DE GOLEM (Golem)


Teimoso por natureza


Desde o mais longínquo tempo, desde que "o mundo é mundo", desde que se tem notícias, o ser humano é, por excelência, um casmurro, um obstinado. Essa característica trouxe consigo aspectos muito positivos e decisivos, inclusive para a perpetuação da espécie. Porém, como tudo sempre tem dois lados, trouxe também percalços.


Uma ideia recorrente e portanto teimosa do ser humano é a de questionar o poder de Deus. Daqueles a quem Este sequer existe, àqueles que Nele crêem porém o afrontam, por fim, àqueles que - apesar da crença - se prestam a tentar emulá-lo. É por conta dessa, digamos, teimosia, que a Lenda de Golem surgiu.


Lituânia, século 19, um vilarejo de judeus no qual os homens locais são avessos à guerra e conflitos se vê diante da ameaça de extinção por que lhes foi imputada a culpa de uma praga que assola uma tribo expansionista e dominadora rival. Ajudada por seu marido Benjamin (Ishai Golan), Hannah (Hani Furstenberg) tem acesso à Torá e à Cabala - escrituras sagradas judaicas cujo conteúdo era proibido às mulheres e conhece uma forma de protegê-los de qualquer um que o coloque sob ameaça: dar vida a um ser místico conhecido por Golem. Algo que acreditam já ter sido feito antes. Ao criá-lo, ignora relatos de que a criatura é incontrolável e, a partir de então, se vê diante de um enorme dilema.


Os irmãos Doron e Yoav Paz - que juntos co-dirigiram Jerusalém (2015) e Probidilia (2009), repetem a parceria em A Lenda de Golem, um remake de Golem - Como veio ao Mundo (1920), dos diretores Carl Boese (The Dancer Barberina, 1920) e Paul Wegener (The Treasure of Gesine Jacobsen, 1923) obra prima do expressionismo alemão baseado na lenda judaica que, acredita-se, tenha inspirado Mary Shelley (1797 - 1851) a escrever Frankenstein.


Num momento que ocorre no Brasil e no mundo, em que se rediscute o papel da mulher na sociedade moderna de maneira plena e independente, o filme coloca o espectador em contato com muitas das convenções modernas que tem origens seculares e que, muito embora boa parte delas tenham sido superadas, percebe-se que ainda há muito a questionar, discutir e entender de novas formas, tais como já fora a proibição das mulheres ao estudo, à convicção, ao posicionamento e a ter suas opiniões respeitadas. Retrata uma comunidade inquisidora na qual a mulher tem a obrigação de gerar filhos, de preferência homens, e sobre a qual recai, exclusivamente, a culpa pelo insucesso do casal em tal obrigação, ainda que não seja ela infecunda, por exemplo.


O grande conflito, a coluna cervical da trama é a questão de o ser humano, o ser comum, colocar em cheque as divindades, os porquês das coisas, tentar mudar o rumo daquilo que acontece automaticamente, como nascimento e morte. Ao criar o Golem, Hannah tenta contrariar a natureza, o caráter cíclico da vida, como foi determinado pelo Divino.


Na direção de arte, uma excelente pesquisa histórica deu origem a ambientes, construções, mobílias e figurinos muito bem executados, típicos da época e região onde se passa a trama, aliada a uma paleta de cores que remete ao realismo e se traduzem numa estética instigante.


Nas cenas internas, a direção de fotografia recria a iluminação natural e de luzes incandescentes de um modo convincente que, aliadas à uma captação de alto contraste, imprimem a rusticidade necessária à trama.


Do elenco principal, o que é digno de menção é o desempenho de Hani Furstenberg (Planeta Solitário, 2014), que carrega o filme. Nenhum outro personagem interage de maneira veemente com ela. Até mesmo a criatura Golem, vivida pelo estreante Konstantin Anikienko, que "entra mudo e sai calado" - visto que o personagem não tem falas - tem mais expressão que boa parte do elenco. Não necessariamente porque Hani esteja brilhantemente atuando, tampouco porque os demais atores sejam medíocres, mas essencialmente porque o roteiro não faz boa "tabela" com os demais personagens. Doron e Yoav poderiam ter se valido melhor do elenco.


Duas coisas chamam a atenção:

Uma é algo que incomoda muito, logo no início: um bebê que, embora não tenha seu rosto mostrado, claramente está mamando em sua mãe, porém, um choro de bebê é introduzido, evidentemente não diegético (que não faz parte da cena mostrada). Como poderia o bebê chorar insistentemente enquanto mama? Só pode ter sido uma atitude consciente, um risco assumido dos realizadores - sabe-se lá por quê - pois é uma cena relativamente longa e está ali presente um som que conta uma coisa, mas que a imagem contraria.


Outra coisa é a forma como o Golem é atraído na tentativa de um desfecho, que remete automaticamente à fábula infantil de O Flautista de Hamelin - dos Irmãos Grimm - conto folclórico alemão que inspirou criações no Teatro, TV e cinema, no qual um caçador de ratos, se propõe a controlar um praga destes roedores que assola a cidade de Hamelin. Para tanto, os hipnotiza através do som de sua flauta e os conduz sob música para longe dali. Não se sabe o que veio primeiro, a lenda ou conto.


A lenda de Golem, em si, é uma história interessante. Entretanto, faltou densidade ao roteiro e vigor à direção. O espectador fica com a sensação de que a qualquer momento a trama vai se desenvolver, se animar, arrebatar, mas não deslancha, não empolga, não acontece. Poderia ter havido uma levada mais condensada, mais concisa e rendido um pouco mais de cenas que criassem uma atmosfera de suspense, de terror. O roteiro levanta a bola, mas os diretores não cortam.


Ao final do filme, a vontade que se tem é de procurar uma publicação que conte melhor essa história, reafirmando assim a característica humana da teimosia, que não se atém ao que fora visto.


É um filme da categoria "bonzinho" e só.




bottom of page