O lado tenebroso das tradições
O filme de estreia da diretora zambiana Rungano Nyoni possui um estilo semi-documental associado a uma simples, porém interessantíssima, história individual de uma criança vítima do preconceito baseado em velhas crendices por parte dos moradores da vila onde vive.
Acusada de ser uma pequena bruxa, a ótima atriz mirim Maggie Mulubwa (também estreante) é enviada a uma espécie de campo de concentração de bruxas, onde, assim como as demais supostas bruxas que ali se encontram, deverá prestar serviços (não remunerados, é claro) ao Estado.
Mais adiante, um "funcionário do Estado" de função não muito definida passa a explorar os serviços da suposta bruxinha, pedindo que ela - durante o processo de investigação e identificação de ladrões da comunidade - "utilize seus poderes mágicos" pra identificar os culpados por tais roubos.
A cenas em que ocorrem tais "processos investigativos" chegam a ser hilárias em determinados momentos, mas o que sucede à pequena bruxinha daí por diante não é nada divertido, pois, ao ver que a criança passa a ter credibilidade junto à comunidade e até receber presentes por conta de suas "descobertas", o tal oficial do Estado (hilariantemente vivido pelo ator Henry Phiri) passa a explorá-la cada vez mais, chegando até a lançar uma marca de ovos supostamente benzidos pela garota.
Do ponto de vista técnico, Eu Não Sou Uma Bruxa também possui muitos méritos, afinal, embora rodado na Zâmbia e com atores locais, trata-se de uma co-produção entre Reino Unido, França e Zâmbia. Por isso mesmo, apesar do aqui mencionado caráter semi-documental do filme, não esperem ver uma produção deficiente em termos técnicos ou realizada com poucos recursos. O que se vê ao longo de todo o filme é uma ótima fotografia e sobretudo um trabalho de desenho de som realmente impecável, de fazer inveja a muitas produções norte-americanas, por exemplo.
Assistir Eu Não Sou Uma Bruxa nos faz mesmo pensar no quanto o peso das tradições em qualquer sociedade ou comunidade pode, em determinadas circunstâncias, ser nocivo ao bem-estar coletivo e sobretudo individual.
E apesar do olhar evidentemente etnocêntrico aqui presente (mesmo levando em conta que a própria diretora é nascida na Zâmbia), é impossível não se emocionar ou se solidarizar com a pequena Sulha por conta da inaceitável e cruel intolerância da qual ela é vítima, com a conivência de praticamente todos os moradores da vila onde nasceu.