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Exatamente como hoje.
A gloriosa história da música brasileira possui uma mancha até hoje não apagada: o exílio interno de Wilson Simonal. Cantor negro, pobre, morador da favela e filho de uma empregada doméstica, de voz aveludada como poucos, é descoberto pelo caça-talentos Carlos Imperial quando ainda fazia parte do conjunto vocal Dry Boys. O sucesso foi meteórico, por conta de sua belíssima voz aliada ao carisma que dominava multidões.
Seu jeito de bom malandro e marrento - como se diz hoje - que se acentuaram com o sucesso e consequente fortuna fizeram com que pudesse desfilar com belíssimas Mercedes-Benz conversíveis e mulheres esculturais - loiras, preferencialmente - que despertaram a ira da alta sociedade. Ao descobrir um rombo nas contas de sua empresa, desconfiou do contador e pediu que um agente do DOPS lhe desse uma "prensa", o que resultou em tortura, processo e imediatamente acusado de traidor por sua relação com os agentes em plena época de regime militar. Em tempos que não existia internet para o grande público, o Jornal O Pasquim foi o responsável para que a acusação ganhasse corpo.
É exatamente os bastidores dessa história que o roteiro de Victor Atherino (Faroeste Caboclo, 2013) e do diretor estreante Leonardo Domingues - montador do filme Ninguém Sabe o Duro que eu Dei (Cláudio Manoel, Calvito Leal e Micael Langfer, 2009) - aborda.
Com o papel título interpretado de forma impecável por Fabrício Boliveira (Tungstênio, 2018) e sua mulher Tereza interpretado por Isis Valverde (Malasartes, 2017), peca em colocar no papel título um ator que não canta as músicas, e as dublagens soam falsas. Outro problema - este mais sério - é colocar imagens reais do biografado em diversos momentos do filme, o que tira o expectador da imersão da história. É como se ele fosse lembrado que aquele é só um ator, pois o cantor é outro. E isso acontece em diversos momentos, como em apresentações ao vivo e em cartazes que aparecem em meio a outros reproduzidos com Boliveira como o biografado.
Com grandes interpretações, o elenco conta ainda com Leandro Hassum (O Candidato Honesto, 2014) no papel de Carlos Imperial, Caco Ciocler (João - o Maestro, 2017) no papel do policial Santana e Bruce Gomlevsky (Polícia Federal - A Lei é Para Todos, 2017) no papel do contador Taviani.
A direção de Leonardo Domingues tem méritos, como os dois dificílimos planos-sequência: um de abertura, que acompanha Laura Figueiredo (Mariana Lima) descer do carro, entrar na boate, conversar com várias pessoas, e a câmera vai alternando entre os personagens que segue. O outro momento é o que retrata o auge do cantor dominando uma platéia monumental, que canta a música Meu Limão, Meu Limoeiro entusiasmadamente enquanto ele sai, vai ao bar do lado beber um drink e volta ao palco.
A reconstituição de época com a excelente direção de arte de Yurika Yamasaki (Lavoura Arcaica, 2001), figurino de Kika Lopes (Kardec, 2019) e direção de fotografia de Pablo Baião (A Floresta que se Move, 2015) são impecáveis.
É um belo filme - com pequenos deslizes - que tem outra virtude: a de não santificar o biografado, mostrando seu egocentrismo ao mesmo tempo que apresenta sua indignação com o preconceito racial. Talvez o primeiro seja uma consequência do segundo, uma vez que atingiu um status e posição social que nenhum outro cantor negro brasileiro tinha conseguido até sua época. Ao mesmo tempo que sua música era festiva, sem nenhuma preocupação com mensagem política ou ideológica, não aceitava se colocar na posição que era permitida ao negro: a de ser subalterno e colocar-se no espaço que era permitido. Um belo e importante filme que merece ser visto e a história de Wilson Simonal reconhecida, principalmente porque, mesmo nos tempos atuais, quem não faz parte da maioria é posto de lado no meio artístico, jornalístico, etc.