Um filme grandioso e perigoso
O filme Coringa apresenta o desenvolvimento da personalidade de um dos maiores vilões da história dos quadrinhos. A entrega (tanto física quanto emocional) que Joaquin Phoenix (Gladiador, 2000) dedica ao personagem resulta numa atuação memorável.
A história do filme mostra o declínio de um homem humilhado, se transformando em um psicopata. Coringa opta por finalmente dar uma identidade ao personagem Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), coisa que nas HQs nunca ocorreu. O clássico personagem nunca teve sua real identidade revelada, sempre foi um mistério para o público saber quem de fato ele é, pois em todas as histórias anteriores quem conta sua origem costuma ser o próprio interlocutor.
Na trama do novo filme, ele trabalha como palhaço durante o dia enquanto tenta a sorte como comediante de stand-up à noite, sendo que sua consagração nessa nova profissão mostra-se bastante improvável, visto que ele sofre de transtorno de expressão emocional involuntária, o que o faz ter frequentes ataques de riso incontroláveis. Algo que casa perfeitamente com o personagem das HQ's que constantemente ria da desgraça alheia e também de sua própria.
O diretor Todd Phillips (Cães de Guerra, 2016) acertou ao situar a história entre o final dos anos 70 e início dos 80 e também no sentido de evitar qualquer tipo de conexão do personagem com outros heróis, pois o fez sem descartar sua futura existência, deixando um gancho para o seu surgimento numa Gotham City inevitavelmente caótica.
Com exceção de Gotham City e da família Wayne, aliás, o longa não faz nenhuma referência ao célebre personagem da DC Comics. E isso é ótimo, pois deixa a trama livre pra trabalhar unicamente seu protagonista: o Coringa. Personagem este que no cinema foi eternizado por atuações esplêndidas como as de Jack Nicholson (Batman, 1989) e Heath Ledger (Batman - O Cavaleiro das Trevas, 2008), como também desastrosas, no caso de Jared Leto (Esquadrão Suicida, 2016), por exemplo. O Coringa sempre foi interpretado de formas diferentes e até as interpretações ruins e estranhas - como a de Leto - tem lá o seu mérito, por trazerem mais mistério à lendária figura do palhaço do crime.
Phoenix não é uma exceção à regra. O ator nos entrega um personagem mais instável, uma miscelânea de emoções. É carente de um modo que nos faz ter vontade de abraçá-lo e ajudá-lo, antes do momento em que seu lado agressivo e psicótico emerge, é claro. Tal fato, inclusive, incomodou alguns críticos que chamaram o filme de "tóxico", por ele nos fazer ter empatia pelo vilão e compartilhar de sua raiva ao nos colocarmos em seu lugar.
A frase dita pelo personagem na HQ A Piada Mortal, parece se encaixar perfeitamente na sociedade atual: "Só é preciso um dia ruim para reduzir o mais são dos homens em um lunático!"
E aqui nesta obra ficcional não é só um dia ruim, mas sim toda uma vida ruim, de humilhações, que leva o personagem à insanidade. Algo que pode ser perigoso para mentes já perturbadas. O filme, aliás, tem classificação para maiores de 18 anos, provavelmente por conta dessa perspectiva danosa e perigosa.
E por falar em HQ's, apesar de não ser baseado em nenhuma HQ em particular, o filme vai muito mais fundo em Cavaleiros das Trevas de Frank Miller do que a trilogia de Christopher Nolan (Interestelar, 2014), por exemplo. Há também elementos de A Piada Mortal de Alan Moore.
Porém, em Coringa nada é exatamente o que parece. Isso revela-se também na liberdade que a Warner deu ao diretor - que é também assina o roteiro - visto que a trama não é baseada em nenhuma HQ em especial, mas possui muitas referências extraídas do cinema dos anos 70, como por exemplo: Rede de Intrigas (1976) e Um Dia de Cão (1975) - ambos dirigidos por Sidney Lumet - e também Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982) - ambos dirigidos por Martin Scorsese). Desde a participação de Robert de Niro (Ajuste de Contas, 2013) que em O Rei da Comédia vivia um comediante fracassado que tentava a todo custo participar de um talk show e agora vive justamente como apresentador do principal programa de Gotham City. Há também a paleta de cores do figurino dialogando com o cenário. Tais filmes clássicos, estão muito mais presentes como referências em Coringa do que qualquer HQ. E isso talvez cause estranhamento em fãs mais antigos do personagem.
Eis aqui um trabalho realmente singular. Um autêntico estudo sobre a loucura e a sociedade. Não espere ver um típico filme de herói. Este longa deve agradar justamente aqueles que não gostam deste subgênero, mas agradará também os autênticos fãs do personagem. Uma experiência diferente, mas que, definitivamente, vale à pena.
Sem dúvida, é um filme acima da média. Conta com grandes atuações, ótima fotografia e uma história que merece ser vista mais de uma vez. Tem tudo para abrir uma nova sequência de longas para a DC mais adultos, com temas mais pesados e diferentes do que se vê por aí atualmente. Joaquin Phoenix nos entrega mais uma grande atuação que deve quebrar barreiras também no Oscar. Pois ele deve e merece, sem dúvida, ser lembrado na premiação.