O GÊNERO HORROR A SERVIÇO DA CRÍTICA SOCIAL
por Ricardo Corsetti
Confesso não ter assistido à primeira adaptação do conto Candyman, escrito em 1986, pelo autor britânico Clive Barker: O Mistério de Candyman (Bernard Rose, 1992). Portanto, não posso julgar o novo filme A Lenda de Candyman, inspirado no mesmo conto, por meio do fator comparativo em relação ao, digamos assim, filme de origem da trama.
Mas até pelo fato desde novo filme ter sido produzido e corroteirizado pelo célebre Jordan Peele, autor dos sucessos de público e crítica: Corra! (2017) e Nós (2019), é impossível não ver semelhanças entre sua obra e a de sua pupila escolhida para dirigir A Lenda de Candyman, Nia DaCosta (Passando dos Limites, 2018).
A começar pelo fortíssimo traço de crítica social focado no "racismo estrutural" que fez e sempre fará parte da história norte-americana, conforme fica claro já nos minutos iniciais do filme da jovem diretora, a utilização do gênero horror para sublinhar a violência física e verbal à qual os afrodescendentes norte-americanos estão sujeitos em seu dia a dia, assim como já ocorria nos ultra-badalados filmes de Peele citados, constitui a base e principal diferencial oferecido por A Lenda de Candyman em relação aos filmes de horror convencionais, que quase sempre se resumem ao mero entretenimento, sem maiores pretensões.
O desenvolvimento da trama co-escrita por Peele e DaCosta acerta o alvo ao não pesar a mão no panfletarismo no momento em que descreve a forma como a elite branca norte-americana "empurra" os afrodescendentes e imigrantes para bairros periféricos e mal-estruturados e, décadas depois, põe abaixo os conjuntos habitacionais populares ali construídos para "repaginar" tais bairros ou guetos, como locais agora destinados à classe média (quase sempre branca) e universitária.
No entanto, ao mesmo tempo em que A Lenda de Candyman acerta bastante no desenvolvimento de roteiro, por outro lado, muitas vezes não esconde a inexperiência da diretora, que erra, sobretudo, na execução e apresentação das cenas de maior ação ou violência. A cena do banheiro, por exemplo, em que as patricinhas de um colégio são executadas após ironizarem a lenda em torno de Candyman, o desafiando a agir, me parece bem mal executada, sobretudo pelo cuidado, digamos assim, "asséptico" em quase não mostrar o sangue das garotas jorrando; numa situação que, a meu ver, pediria um efeito típico de "teenager slasher", com muito mais violência explícita como forma de impactar o espectador.
De modo geral, os efeitos especiais utilizados nesta e em outras cenas de maior ação me parecem ruins em relação ao show de técnica apresentado em Corra! (2017), um filme realizado com 4 milhões de dólares e, portanto, um orçamento bem inferior ao filme de Nia DaCosta.
Mas é também fato que estes deslizes técnicos e de produção não chegam realmente a prejudicar a eficácia e relevância de A Lenda de Candyman enquanto retrato de uma sociedade que se apresenta como um "oásis de democracia e tolerância ao diferente", mas que na prática, por trás das máscaras da superfície, esconde, ainda nos dias de hoje, uma outra face que não é nada simpática, mas sim caracterizada por racismo, xenofobia e diversas outras formas de intolerância cotidiana.
Em outras palavras, com senso de humor cruel, A Lenda de Candyman expõe as cruéis mazelas entranhadas no ventre da "doce terra da liberdade".
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