CRUZANDO A LINHA TÊNUE QUE SEPARA O "FILME DENÚNCIA" DO DISCURSO POLÍTICO
por Ricardo Corsetti
A festejada e incensada - por crítica e público - animação anglo-dinamarquesa "Flee", dirigida pelo estreante em longa-metragem Jonas Poher Rasmussen, embora tecnicamente muito bem realizada e com temática extremamente relevante nos dias atuais, marcados por conflitos bélico-políticos entre diversas nações, nem sempre consegue manter o distanciamento necessário, ao contar a história real do jovem Amin Nawabi.
Com produção executiva assinada pelo astro britânico Riz Ahmed (O Som do Silêncio, 2019), Flee emociona ao descrever o quão difícil (ou até mesmo, quase impossível) era para o jovem afegão Amin assumir sua homossexualidade, a respeito da qual tinha consciência desde garoto, num país dominado pelo fundamentalismo islâmico do famigerado Talibã. O problema é que, ao construir esse retrato acerca da evidentemente difícil realidade enfrentada pelo protagonista, o diretor/roteirista acaba por "pesar a mão" na visão eurocêntrica de mundo. Em outras palavras, embora a jornada enfrentada por Amin para deixar seu país e conseguir entrar (ilegalmente) na Europa seja absolutamente real, há claramente um discurso no sentido de tratar o Afeganistão (bem como a Rússia, por onde o garoto também passou, rumo à Europa central) como uma "terra de bárbaros sanguinários", enquanto a Europa "desenvolvida" é, claramente, tratada como sendo - parodiando a velha expressão cristã - "o caminho, a verdade e a vida".
Mas contradições e discursos ideológicos à parte, Flee chega mesmo a emocionar, ao nos apresentar a quase inacreditável jornada vivida pelo jovem rapaz e também por sua mãe e irmão mais velho, rumo à - digamos assim - "Terra Prometida" que, no caso aqui específico, seria a Suécia, mas, por acasos do destino, ao menos para o nosso protagonista desta história real, acabou sendo a Dinamarca.
Destaque para os momentos (que funcionam como um ótimo "ponto de respiro" em meio a uma história tão pesada) em que o ainda pequeno Amin fantasia uma espécie de "flerte" com o astro belga - radicado nos EUA - Jean-Claude Van Damme, ao assistir filmes por ele estrelados logo quando chega à Europa, na casa de seu tio.
Deslizes quanto à tendência a idealizar demais a velha Europa como um autêntico "paraíso perdido", a animação documental, no entanto, consegue em vários momentos cumprir bem seu evidente objetivo no sentido de nos sensibilizar quanto à necessidade de verdadeiramente construirmos um mundo em que as escolhas feitas por todo e qualquer indivíduo sejam plenamente respeitadas pela coletividade em que ele está inserido.
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