Atualizado: 17 de out. de 2021

OS MISERÁVEIS NA PARIS DO SÉCULO XXI
por Alvair Silveira Torres Junior
Na Paris de Victor Hugo, cenário da monumental obra literária Os Miseráveis (Victor Hugo, 1862), este magistral romance conta-nos a história dos desvalidos e traz à luz os pobres como protagonistas. Era o século XIX. Agora, Sob as Escadas de Paris, o diretor estreante Claus Dexel - de forma bem mais modesta na profundidade e na complexidade do tema, mas não menos humana - revela os pobres deste século ocupando as partes ocultas de uma Paris em becos, porões, túneis. Enfim, com sua câmera mergulhando nas partes baixas daquela cidade e revelando sem tetos e imigrantes ocupando os espaços mais improváveis e escuros para se viver na cidade “das Luzes”.

A história é simples e linear em que uma senhora sem-teto (sabe-se depois uma ex-cientista com algum trauma do seu passado) passa a ajudar um menino africano perdido de sua mãe, a reencontrá-la antes que ela seja deportada pelas autoridades francesas.
A história se reveste de um espírito de fábula urbana através da sucessão de cenas dos personagens perambulando pela cidade, encontrando-se com outros desvalidos, pobres, gangues, migrantes e, ocasionalmente, tendo que lidar com a rudeza e indiferença de autoridades e cidadãos.
O diretor escolheu um encontro improvável da senhora sem-teto com o menino perdido, mais a ingenuidade da solução de procurar a mãe em meio ao complexo da cidade, para denunciar as graves questões da imigração e da gestão da pobreza em Paris. Não se busca verossimilhança nas cenas, mas despertar o pathos do espectador para a situação de exclusão social, em meio à poesia e leveza pungente da história.
Entretanto, apesar do valor da proposta da obra, o espectador poderá perceber um excesso de ingenuidades da história, com exageros que fazem o diretor perder a mão em algumas cenas, ao parecer que se quer arrancar lágrimas a qualquer custo. Muitos encontros no percurso da história são excessivamente improváveis e algumas situações querem passar um certo humor, mas também nisso se perde o equilíbrio.

Em suma, o filme tem problemas no alcance do seu propósito ao se recusar em trazer à tona uma denúncia mais objetiva do problema com alguma dose de indignação dos personagens. Isso caberia muito bem sem quebrar a poesia e leveza propostas, porque todos sentimentos humanos ocorrem misturados até nas almas mais puras, e de todos eles também precisamos para revelar a crueza das coisas no mundo, sem precisar dar ênfase somente em dor ou sangue, mas também sem cair no outro extremo como faz o filme. Assim, o espectador pode esperar um filme de caráter humano e sensível, mas que pelo exagero de suas escolhas ingênuas pode não agradar a maioria.

RESGATANDO A TRADIÇÃO DO SLASHER
por Ricardo Corsetti
Qualquer fã assumido do subgênero slasher - caracterizado por mortes sangrentas e temática quase sempre juvenil - com certeza irá ver este novo episódio da franquia "Halloween", iniciada em 1978 a partir do filme homônimo dirigido por John Carpenter, com enorme expectativa. Até porque, na prática, eis a única sequência do filme original, verdadeiramente reconhecida por seu autêntico criador, o já citado e icônico John Carpenter (Vampiros, 1991).

E dentro do esperado, o resultado aqui até que é bem satisfatório. Roteiro ok - com um bom prólogo de apresentação do personagem central, Michael Myers, para quem não viu o filme original de 1978 -, sangria em doses generosas e pitadas de humor na medida certa.
Aliás, o que mais gostei em Halloween Kills foi, justamente, ver que o jovem diretor/corroteirista David Gordon Green (Segurando As Pontas, 2009) não teve medo de, digamos assim, "sujar as mãos" nas muitas cenas de violência que permeiam a trama. Digo isso, pois, em tempos de "cultura da lacração", meu receio era ir ao cinema e ver mais um filme insípido, asséptico e assexuado, como tantos outros que tem sido realizados nos últimos anos. Falando nisso, faltou apenas uma pitadinha de sexo que, aliás, sempre caracterizou os velhos clássicos do slasher, constituindo inclusive uma das "regras" do subgênero, onde normalmente as mortes ocorriam após divertidas cenas de sexo adolescente. Mas, enfim, para os neo-moralistas dos dias atuais, já está bom demais o consolo oferecido pelos momentos "sanguinariamente divertidos" do filme.

Outra coisa que sempre me fascinou nos clássicos do gênero é o fato de que os assassinos que os protagonizaram normalmente não serem propriamente psicopatas, mas sim outsiders. Ou seja, garotos que sofreram bullying na infância, não faziam parte do seleto grupo dos populares da turma no colégio, etc; e justamente por isso, ao crescerem resolviam, digamos assim, cobrar a dívida que a sociedade tinha em relação a eles. No caso específico de Halloween Kills não sei até que ponto esse traço específico da personalidade de Michael Myers (o assassino) fica claro na forma como ele nos é apresentado. Até porque, em determinados momentos, se tenta imprimir um caráter quase sobrenatural ao personagem, embora não seja plenamente desenvolvido.

Destaque para o ótima trilha sonora composta pelo lendário John Carpenter (que também assina a produção executiva) que é, inclusive, a mesma utilizada no célebre filme setentista.
A presença da igualmente icônica Jamie Lee Curtis (Um Peixe Chamado Wanda, 1988) revivendo aquela que é, provavelmente, a mais lendária personagem de sua carreira: Laurie Strode (a protagonista do filme de 1978). Obviamente também merece destaque, embora, na minha opinião, ela pudesse ter sido bem melhor aqui aproveitada em vez de ser relegada a um personagem secundário na trama do novo filme.
Atualizado: 3 de out. de 2021

CONSERVADORISMO CONSISTENTE E CONTUNDENTE
por Ricardo Corsetti
Mesmo quem, assim como eu, normalmente não simpatiza com os grupos conservadores que, tanto no Brasil quanto ao redor do mundo, condenam veementemente a prática (legal ou ilegal) do aborto, dificilmente conseguiria não colocar em dúvida suas convicções, ao ver este interessante e já candidato a polêmico filme O Direito de Viver.
Embora abuse do tom melodramático em alguns momentos, o filme escrito e dirigido pela estreante Cathy Allyn e Nick Loeb (Carga Preciosa, 2016) se apoia em argumentos contundentes para sustentar sua posição claramente anti-aborto.

Para início de conversa, o longa nos apresenta o fato real e pouco conhecido de que uma das pioneiras na defesa da prática do aborto nos EUA era uma mulher de origem social privilegiada que se associou à Ku Klux Klan (organização assumidamente racista) para realizar abortos em larga escala em mulheres negras visando "conter a expansão descontrolada de bebês negros na América". Detalhe: a primeira associação pró aborto por demanda (sem ser motivado por estupro ou risco de morte à mãe) foi criada em homenagem justamente a essa mulher.
Após este prólogo de apresentação da trama, O Direito de Viver se concentrará no embate entre o Doutor Aborto (Bernard Nathanson) e a Doutora pró-vida Mildred Jefferson, a partir do final dos anos 60, que se estende por pelo menos duas décadas.
A partir daí, o filme procura apresentar um perfil puramente oportunista por parte do Doutor Aborto ao se associar a grupos feministas e progressistas, em favor da prática e legalização do aborto por demanda, em todo o território norte-americano.

A narrativa é eficiente ao apresentar seu ponto de vista contrário ao aborto, ao questionar a partir de que momento o feto representa de fato uma vida humana já formada e não "apenas um bolo disforme de sangue e tecido", conforme chega a classificar o feto, o Doutor Bernard Nathanson.

Além disso, vemos o progressivo arrependimento e drama de consciência vivido pelo já então rico e famoso médico, ao constatar que suas hipóteses acerca da "ausência de vida" nos milhares de fetos humanos que ele eliminou, estavam erradas. Fato que se deveu, segundo o doutor Nathanson, à inexistência do ultrassom na época em que ele começou a realizar abortos em grande escala, o que "não lhe permitiu ver o tamanho do erro que estava cometendo", conforme as palavras do próprio.
O principal ponto baixo do filme, porém, é a escolha de um de seus próprios diretores, ou seja, Nick Loeb, como protagonista. Pois ele sinceramente não tem carisma (ou mesmo talento dramático) suficiente para dar conta de um personagem (real) tão denso e historicamente importante.
Felizmente, para compensar tal erro, O Direito de Viver conta com um elenco coadjuvante de primeiríssima, com destaque para a bela e talentosa Stacey Dash (Nunca É Tarde Para Amar, 2007) como a célebre doutora Mildred Jefferson e também para a dupla de juízes vividos por John Voight (Perdidos na Noite, 1969) e William Forsythe (Fúria Mortal, 1991), além do ex-galã oitentista Steve Guttenberg (Loucademia de Polícia, 1984) como um importante político. Obs: o ótimo trabalho de reconstituição de época da direção de arte também é digno de nota.
A cena, já próxima ao desfecho do filme, em que o próprio Doutor Aborto vê na tela do ultrassom um feto, já visivelmente com aparência humana constituída, sendo literalmente despedaçado e arrancado do ventre materno é mesmo contundente, a ponto de me fazer questionar minha postura em relação ao aborto.
Filme realmente necessário e pertinente à eterna discussão sobre o tema.









































